Além da Conta | 📁 Material Recuperado

Davi do céu,

Estou sentada, feliz da vida, com o rosto um tanto desfigurado pelas corrosivas dúvidas que você não costuma responder — e pensando em você.
Ainda bem que, com todas as minhas outras vantagens, não preciso ser linda. Hahaha!

Você não está pensando em morrer, está?
Você não está prestes a morrer — tenho certeza.
Mas, se estivesse… quais seriam seus planos imediatos?
Confesse, Davi.
Quero saber.

O que quer que tenha passado por essa sua cabeça labiríntica, por favor, me conte.
Sou muito insistente, você sabe. Nunca deixo nada pra lá.
E lembre-se de que gosto infinitamente de você.
Em minha defesa: eu sempre respondo às suas perguntas. Todas.
Bem… pelo menos a imensa maioria delas. (Extremo oposto seu, hein?!)
Silencioso Davi…

E agora, como você pode constatar, estou muito curiosa.
Injustamente!
Porque foi você quem me fez pensar nisso.
Então, quero saber.
Mesmo que seu plano seja sentar no chão da cozinha e comer pasta de amendoim crocante direto da embalagem até morrer. (Você que mencionou isso uma vez!)

Sinto dizer que estou aqui fosforilando ideias embaladas por uma garrafa e meia de café. Preto. Puro. Forte.
Isso transpõe barreiras, mata a fome e esconde o sono.
Ou seja: posso passar horas escrevendo.
(Estou digitando rápido como nunca tinha conseguido, você devia ver!)

Mas a vantagem é que não estou imune à incompreensão dos limites.
Bom… verdade seja dita: não estou dando a mínima para os limites.
E vou, com toda a certeza, passar da conta.
Você nunca erra? Nunca passa da conta?
Você tem muito mais treino do que eu. Isso não é justo. Injusto Davi.

Eu quero todas as suas respostas — até as que você esconde de propósito.
Quero as que você ainda nem tem.
Por um momento de maior delírio, achei mesmo que era só pedir. Não era.
Mas mesmo assim, peço: conta para mim?

Se você soubesse o que penso de você, mas soubesse de verdade, — e acreditasse
(incrédulo que é!) — não se preocuparia em parecer forte, ou parecer frágil, ou parecer qualquer coisa.
Você apenas seria. Você.
Como no escuro do seu quarto.
Aliviado por saber que eu continuo fascinada por você, independentemente do que diga.

Você poderia me usar como catarse, como processo, para ordenação de ideias.
Mostre para mim o que tem dificuldade de encarar.
Fica a seu critério se quer que eu opine, ou apenas guarde em silêncio.
Você define, eu acato — é só dizer.

Não existe o menor perigo de eu deixar de gostar de você.
Por nada neste mundo. E em nenhum outro.

Se você soubesse…
Se tivesse ideia de como eu vejo você, você nunca teria medo de me escrever o que quer que fosse.
Mas assumo: eu duvido de você.
(E deveria pedir desculpas?)
Porque acredito que você não se permite aceitar o que escrevo.

Como se não conseguisse conceber a ideia de ser amado só por ser você.
Mas seu nome é Davi — o amado.
Então veja: não há engano possível.

Experimente deixar um furacão entrar sem pedir licença.
(Se já fez isso, faça outra vez. Você já deve ter esquecido.)
Invadir tudo em você. Executar o seu milagre.
(Não estou falando de mim — pelo amor de Deus.)
Falo dos seus próprios sentimentos, por alguém que nem me interessa saber quem seja.
A sua fonte. A sua própria inspiração. (Ó, musa, vem!)
Eu desejaria que fosse eu, sem dúvida.
Mas não é assim que funciona.

Não escolhemos.
Não optamos.
É quem é. E pronto. Resolveu-se a metafísica.

Seja quem for que possa causar esse efeito em você —
isso nunca vai me impedir de sentir tudo o que sinto.
E contar através de cartas. Do mesmo jeito absurdo de sempre.

Eu espero (mesmo agonizando a picada medonha da mosca azul) que você conheça essa sensação,
para que me entenda — e acredite, de verdade, no que digo.
Mas saiba: continuo duvidando.

Eu sei.
Já passei da conta.
Mas e daí? Quem de nós nunca passou da conta?
Quem nunca amou, pensou, bebeu, agiu, acreditou, errou ou se ferrou — além da conta?

E daí?

Bom. Para aprender.

Nossas vidas são definidas por oportunidades.
As que aproveitamos e as que perdemos. (Ah! Eu sei.)

Ou ultrapassamos o muro para descobrir o que existe do outro lado, ou nos contentamos com vislumbres do que poderia haver lá.

E sempre iremos arcar com as consequências.
De tudo o que fizemos. E de tudo o que deixamos de fazer.
Da mesma forma brutal.

Ultrapassei o muro.

Você pensou nas coisas que faria se tivesse só mais uma semana de vida.
Conte pra mim.
Quero saber.
Quero conhecer os seus desejos.
Sua própria versão. A edição que você tem de você na sua cabeça.

Quero que você seja o melhor que puder ser — para si mesmo.
Do seu jeito.
Espero que leve uma vida da qual se orgulhe.
Ou que tenha coragem para começar tudo de novo.

Não tenha medo de assumir erros.
Nem de reavaliar sua forma de enxergar o mundo.

Enquanto escrevo para você… é para mim que escrevo.

Finalizei a segunda garrafa…

É assim que a gente entende.
Depois de inundar de café a última víscera.
De drenar a última ideia.
De digitar a última letra.

A gente descobre que o coração não pula para fora. Nem pela carta.

Nunca.

— Aurora

Às vezes, quem escreve precisa mais do que quem lê.
Há um centro imponderável em cada um de nós.
Alguns são alcançados, outros não.
Mas, se por acaso isso também tocou você…
não tenha medo de escrever de volta.