Desvios Intencionais Insistentes

Se esta é sua primeira dose, saiba:
 
❧ Aos domingos: Dose Plena traz doses de reflexão filosófica. Aqui está a última edição: 🔗O Que É Realmente Nosso

☍ Às quintas: abre-se o Arquivo Confidencial [Contraponto] — ficção epistolar.
 
✑ Hoje, no cardápio: Entretenimento ficcional de quinta.

Caríssimo Davi do meu coração,

Tem um ipê amarelo no meio do meu trajeto, já falei dele? 
Tem vários, mas um em particular – e este, de algum modo, faz com que eu pense em você. 

Talvez você seja um dos melhores feiticeiros encantadores de ipês que ainda existem por aí. E eu imprudentemente olhei para o ipê. Talvez a culpa não seja minha, afinal.

Fica no topo de uma subida sinuosa, o fantástico espécime de ipê, depois que se sobe com o carro virando à direita, exatamente no ponto onde se deve esterçar rápido e totalmente para a esquerda. Dou de cara com aquele ipê, onde a rua se torna plana.
Dificulta a manobra que eu faço, cada vez que enxergo o ipê, e sou tomada pelo efeito que você me causa. E é um efeito brutal, só para você saber.

Toda vez, o mesmo gatilho – que eu nem tinha percebido até hoje. 

Uma tensa antecipação de avistar o magnífico ipê, desde a rua de baixo – quando ainda nem tenho certeza se vou mesmo subir por aquela via e perder a linha de raciocínio do que estava fazendo. (Mentira! Eu vou por ali intencionalmente, qualquer desculpa esfarrapada vale o trajeto). Doce expectativa…

Quando estávamos no antigo Reino de Outrora, eu afundava a sua rua de tanto fazer a volta lá, em busca desse efeito. Sorte que dava para fazer o retorno logo depois da ponte. Algumas vezes alguém estava comigo no carro e, mesmo assim, eu não resistia. 

Passava por lá, até o final da rua, atravessava a ponte, só para depois voltar o trajeto todo. (Mas já contei isso, acho). 

Deviam pensar que eu tinha problemas. No carro, um silêncio polido. 

As minhas melhores amigas, obviamente, notavam. Faziam misérias. Tinham até uma música para cantar aos berros enquanto me enchiam os ombros e a cabeça de tapas. Ainda bem que eu era muito "braço" para dirigir mesmo sob agressão física. Vantagens de ser jovem e fazer idiotices com perfeita compostura.

Então, nesta altura da vida – séculos depois de todos os elos desperdiçados, percebi que coloquei aquele ipê no lugar do seu castelo. Não sei por qual mecanismo. Funciona quase igual. A diferença inegável é que aqui não existe a menor possibilidade de flagrar você saindo – ou voltando (o que talvez fizesse algum sentido lá). Mas ainda assim evoca o tal efeito. Bruxaria das fortes. 

Só descobri que fiz essa associação porque sonhei com isso. E as cruéis criaturas tenebrosas do meu sonho tinham amarrado uma fita preta no caule do meu ipê. 

Significava que autorizaram o corte. Eu implorei que não permitissem.
Elas disseram que o ipê não me pertence. (De fato, não me pertence).
Elas achavam que não faz sentido algum eu gostar de passar por lá. 
E não admitiam explicação ou argumento possível. 

Acordei com a percepção do que eu tenho feito há algum tempo. (Nem sei quando comecei). E agora? Não quero perder a magia do ipê encantado. 

Obriguei-me a ir até lá, a fim de verificar se havia alguma fita preta no caule do ipê.

Se houvesse, eu a teria cortado, num desafio frontal àquelas criaturas.
Mesmo que despertasse a pior fúria delas.
Eu faria de novo, para poupar o horror da derrubada.
E faria de novo, e de novo, e de novo, e de novo, se precisasse.
Efeito tenazmente defendido.

As coisas que as pessoas fazem...
Que absurdo apego de se ver uma coisa como se fosse uma pessoa, e depois sofrer o medo de perder a coisa como se perdesse a pessoa.
Não faz sentido algum. Mas por enquanto, o ipê fica onde está. 
O efeito em mim, garantido.